Um número crescente de crianças está sendo exposto de forma intensa nas redes sociais, seja por iniciativa própria ou pelos pais, que compartilham momentos do dia a dia com familiares, amigos ou até grandes audiências. Especialistas alertam que essa exposição precoce, conhecida como “adultização”, pode afetar o desenvolvimento emocional das crianças, aumentar riscos de ansiedade e depressão, além de deixá-las vulneráveis a crimes como assédio, abuso e pedofilia.
Para a psicóloga Débora Sampaio, a adultização interfere diretamente na formação da identidade da criança, que é o processo fundamental de autodescoberta. Esse ponto ficou ainda mais evidente no vídeo recente do Felca, que mostra crianças reproduzindo comportamentos e danças sensuais sem compreender seu significado real, pressionadas por padrões externos e pela necessidade de aceitação nas redes sociais.
“A criança, ao ser empurrada para papéis e comportamentos que não correspondem à sua fase de desenvolvimento, deixa de escolher suas próprias características e desejos. Ela tenta atender expectativas externas, como vestir-se igual às pessoas que vê, reproduzir danças sensuais sem entender seu significado”, explica.
Débora Sampaio alerta para os riscos dessa exposição: “Além da perda da privacidade, as crianças ficam vulneráveis a comentários negativos, cyberbullying e predadores digitais. Essa exposição pode estimular a dependência da validação externa, gerando uma necessidade constante de curtidas e elogios para se sentirem valorizadas.”
O contato frequente com críticas, cancelamentos e haters nas redes pode ter efeitos devastadores. “Crianças e adolescentes estão em processo de formação emocional e social e buscam reconhecimento no olhar do outro. O ataque constante pode gerar humilhação, vergonha e insegurança, levando a ansiedade, isolamento social, medo e até depressão. A exposição contínua pode ainda normalizar a violência verbal, prejudicando as relações interpessoais”, destaca.
Além disso, a psicóloga ressalta que essa superexposição amplia a vulnerabilidade a crimes como pedofilia, assédio e abuso online. “Crianças e adolescentes ainda não têm repertório emocional e cognitivo maduros para lidar com esses riscos. Fotos, vídeos e informações pessoais podem ser usados para manipulação emocional, chantagem e aliciamento”, alerta.
Débora Sampaio enfatiza também a importância do acompanhamento ativo dos pais sobre o que as crianças assistem e compartilham. “É fundamental que os responsáveis acompanhem, respeitando e orientando o que seus filhos consomem e divulgam. Muitas vezes, eles compartilham conteúdos sem sequer perceber o potencial prejuízo ou comprometimento que isso pode acarretar para eles e para os responsáveis”, orienta.
Direitos das crianças e a responsabilidade legal
A advogada Luciana Lucena, especialista em proteção de crianças e adolescentes no ambiente virtual, reforça que essa questão ultrapassa o âmbito das orientações e envolve direitos protegidos por lei. “Crianças e adolescentes são considerados hipervulneráveis e merecem proteção máxima. A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente exigem respeito à identidade, integridade psíquica e moral, incluindo a preservação da imagem, autonomia e privacidade”, afirma.
Luciana Lucena alerta para a necessidade de cuidado redobrado com conteúdos que possam ser vexatórios. “O que para alguns é engraçado, para a criança pode ser constrangedor. A internet não tem devolução: uma foto ou vídeo de uma criança em situação íntima, como no banheiro, pode parecer inocente, mas esse material pode ser usado contra ela anos depois”, orienta.
O perito em computação forense Clézio Lima reforça que, apesar das boas intenções, muitas vezes pais e familiares não percebem os riscos. “O olhar dos pais ou avós é puro, cheio de amor, mas para um predador digital imagens aparentemente inocentes — crianças de biquíni, sunga, ou meninos e meninas apenas de roupa íntima — podem ser capturadas e sexualizadas, comercializadas em ambientes como a Dark Web”, explica.
Clézio Lima também destaca um problema silencioso e crescente: o consumo excessivo de conteúdos rápidos e vazios, o chamado “brain rot” (cérebro podre). “Crianças que passam horas rolando a tela recebem doses rápidas de dopamina barata, sem estímulos intelectuais, o que torna a mente vulnerável e suscetível a influências perigosas.”
Ele orienta sobre cuidados fundamentais na hora de publicar fotos e vídeos das crianças: “Nunca exponha uma criança sozinha, mesmo que vestida; sempre inclua um adulto na imagem, isso diminui o interesse dos predadores digitais. Jamais publique fotos vexatórias — crianças chorando, sujas, com birra ou com a boca aberta comendo, por exemplo. Evite também imagens aparentemente inocentes, como crianças chupando pirulito ou tomando sorvete, que podem atrair olhares mal-intencionados.”
Quanto à segurança digital, Clézio Lima ressalta a importância da classificação etária nas redes sociais e do uso de ferramentas de controle: “A maioria das plataformas exige idade mínima de 13 anos para uso, como o WhatsApp, que muitos ainda não reconhecem como rede social. Recentemente, o Instagram aumentou essa idade para 16 anos no Brasil, mas acredito que redes como TikTok e Snapchat deveriam ser restritas para maiores de 18 anos. Além disso, os perfis das crianças devem ser privados, embora isso não seja garantia total de segurança, já que não sabemos quem acessa essas redes. O uso de controles parentais das plataformas e softwares de monitoramento nos dispositivos é fundamental. E, acima de tudo, o diálogo aberto e constante entre pais e filhos é a melhor forma de garantir a segurança e o bem-estar digital.”
A superexposição das crianças nas redes sociais, mesmo quando movida por sentimentos puros e orgulho familiar, gera consequências profundas, desde impactos na formação da identidade e autoestima até riscos concretos de violência e exploração. Por isso, é essencial que pais, educadores, responsáveis e a sociedade atuem com consciência e responsabilidade para proteger a infância em seu tempo e espaço próprios, respeitando os direitos garantidos por lei.







