Bruno Vital
Repórter
A voz grave e marcante de Dona Militana ecoa pelo tempo, preservando memórias de um Brasil que sobrevive na oralidade e na musicalidade popular. No ano em que completaria 100 anos, a maior romanceira do País segue viva através de sua obra, de seu canto e do legado que ajudou a construir para a cultura potiguar e brasileira. De São Gonçalo do Amarante para o mundo, Militana Salustino do Nascimento transformou o que era antes um saber familiar em um patrimônio imensurável para a identidade do povo nordestino.
Dona Militana nasceu em 19 de março de 1925, no sítio Oiteiros, em Santo Antônio dos Barreiros, São Gonçalo do Amarante, na Grande Natal. Filha de Atanásio Salustino e Maria Militana, e desde cedo esteve imersa na cultura popular. No terreiro de casa, entre a roça e o trabalho artesanal, aprendeu romances ibéricos de tradição oral, canções que atravessaram séculos e foram sendo moldadas pela memória e pela criatividade popular. As histórias preservavam a estética e os ritmos de uma cultura que remonta à Idade Média.
Militana canta suas histórias luso-nordestinas, ibéricas e medievais, de príncipes e princesas, reis, cangaceiros, santos, coronéis, tramas de poderosos que datam de 500, 600, 700 anos antes de seu nascimento, e que encantam pela simplicidade com que são declamados e pela riqueza com que os versos estão guardados. “Tenho mais de 55 romances aqui nesse ‘quengo’”, como gostava de lembrar a romanceira potiguar, que faleceu em 2010.
Romances como o de “Rosa”, que narra a jornada de uma mulher com incrível beleza e que cansava de “contar dinheiro”, mas morreu abandonada. Outros como “Os Piratas”, trazem histórias de um naufrágio de um navio com um capitão bêbado e um piloto dorminhoco. Além disso, o “Romance do Criolo Timote” narra a contenda com um bode bravo. “O Mouro e a Estrangeira” descreve a triste história de uma mulher estrangeira que morre durante um parto.
Antônio Nóbrega, violinista, cantor e pesquisador cultural, que conviveu com Dona Militana, destaca a importância cultural da romanceira. “Foi uma grande surpresa por encontrar uma senhora que tinha uma memória prodigiosa, que guardava um acervo muito importante para a compreensão da história da literatura popular brasileira, que é sobretudo uma literatura construída de poesia, de versos. Guardava na memória diferentes estágios da constituição da história da poesia popular, pelo viés do romanceiro, que é a história cantada, das gestas carolíngias, depois a gente tem o romanceiro brasileiro e depois o romanceiro do RN”, conta.
O brincante do Quinteto Armorial relembra ainda que Dona Militana era “Uma aula viva”. “Eu a tinha conhecido através do livro e a Dona Militana se mostrou na realidade. É muito interessante, uma pessoa negra, cantando romances mestiços em uma rítmica ibérica, com a presença também indígena, então eu acho Dona Militana uma dessas pessoas que são importantes para a compreensão do mundo cultural pelo viés da sua população”, completa Nóbrega.
Disco triplo projetou Dona Militana para o Brasil
A gravação do álbum “Cantares” (2002) foi um marco fundamental na trajetória de Dona Militana, consolidando-a como artista e protagonista de sua própria obra. O disco, composto por 54 romances distribuídos em três CDs, transformou definitivamente a maneira como sua arte era percebida, projetando-a nacionalmente e garantindo seu lugar como referência na cultura popular brasileira. O álbum contou com participações de artistas como Antônio Nóbrega, Dolores Portela, Mingo Araújo, Mestre Salustiano, Waldonys, Carlos Zens, entre outros.
O material foi produzido pelo projeto Nação Potiguar, fundado por Dácio Galvão e pela musicista e fotógrafa Candinha Bezerra, sendo uma realização cultural que contribuiu enormemente para a divulgação do trabalho da artista em diversas partes do Brasil e do mundo.
A relevância do trabalho da romanceira foi reconhecida oficialmente em 2005, quando recebeu do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Ordem do Mérito Cultural, uma das maiores honrarias culturais do Brasil. Além disso, em 2021, Dona Militana foi homenageada pelo Google com um doodle – uma ilustração comemorativa – que destacou a importância para a cultura brasileira e elevou o legado da artista a milhões de pessoas em todo o mundo.
Em 19 de junho de 2010, Dona Militana faleceu, deixando um legado valioso para a cultura popular brasileira. Sua influência permanece forte na memória coletiva e na cultura popular brasileira. Suas gravações seguem sendo referência para estudiosos, artistas e entusiastas das tradições orais e musicais do Brasil.

Exposição celebra o centenário de Militana
A vida e obra da potiguar inspiraram a exposição “Dona Militana: tradução estética de narrativas da romanceira potiguar”, que está aberta na Pinacoteca do Estado, na Cidade Alta, até o dia 28 de março (terça a domingo). A mostra coletiva celebra os 100 anos de nascimento da romanceira ao unir diversas leituras artísticas sobre sua trajetória e legado. A curadoria é assinada por Angela Almeida, Rafael Sordi Campos e Marcos Paulo Pereira.
A exposição propõe um mergulho na arte de Militana. O projeto ocupa três salas interligadas da Pinacoteca, e apresenta instalações artísticas, painéis interativos e objetos do cotidiano da romanceira. Entre fotos, desenhos, instalações e textos, a mostra revela camadas da arte que tornou Dona Militana tão especial na cultura popular potiguar e brasileira. A instalação “Raízes da Memória”, na primeira parte da exposição, traz balaios criados por artesãos de São Gonçalo do Amarante, referência à vida na roça, onde guardava e transmitia os romances aprendidos desde criança.
Em “Reino dos Outeiros”, o sítio onde Dona Militana viveu é reinterpretado simbolicamente com misturas de referências da Europa medieval e da África – incluindo símbolos adinkra africanos, como o sankofa. A instalação “Colheita” usa peças azuis de cerâmica para celebrar a fertilidade cultural de São Gonçalo. O imponente “Baluarte” traz inspiração nas torres dos castelos medievais para representar a força e a determinação de Dona Militana em preservar a tradição oral.
Já a instalação “Água” relaciona a fluidez da água com a oralidade e a transmissão cultural entre Brasil, Portugal e África. Com o uso de cabaças e fios, a obra ilustra o movimento contínuo das narrativas ao longo do tempo. A terceira sala da exposição também exibe oito fotografias raras de Dona Militana, feitas pelo fotógrafo Wagner Varela, e que tinham sido exibidas apenas em 2010, ano em que a romanceira faleceu. Outro destaque é a medalha da Ordem do Mérito Cultural que Militana recebeu em 2005.








